O Fio das Missangas, de Mia Couto
Lista de 05 exercícios de Literatura com gabarito sobre o tema O Fio das Missangas, de Mia Couto com questões de Vestibulares.
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01. (Faculdade Cásper Líbero) Sobre O fio das missangas, de Mia Couto, é correto afirmar:
- Predomina um tom épico que dá conta da relação entre o indivíduo, a família, o grupo e a terra como uma inspiração vizinha da lenda popular (da criação do mundo), configurando a votação do(s) herói(s) ao sacrifício e uma espécie de redenção final operada pela ação dos tempos na terra, isto é, pela ação do trabalho presente sobre o futuro.
- São histórias colhidas no turbilhão de um cotidiano extremamente complexo, não raras vezes violento – física ou psicologicamente; histórias que vão sendo adensadas e condensadas pela leveza da linguagem de uma prosa poética, marca estilística do seu autor; histórias “arredondadas” (diferentes no tom, mas não tão diferentes na forma) que, juntas, dão conta de silêncios e recompõem silêncios – de mulheres, de homens e de toda sorte daqueles à margem (o mendigo, a criança, o velho, o poeta).
- Trata-se de um livro polifônico que, ao mergulhar no universo simbólico da figura dos desterrados ou marginalizados em sua própria terra, firma-se como um feixe de histórias cuja relação esquizofrênica entre sujeito e espaço se dá na linha principal da viagem empreendida rumo a uma “Moçambique profunda”.
- No contexto do qual emergem as histórias, nota-se a tentativa muito bem-sucedida do narrador de amenizar o conflito entre os laivos da tradição moçambicana e o vento avassalador do modus vivendi ocidental, que por anos transformou o território africano em uma espécie de tabuleiro de xadrez.
- As histórias tratam dos problemas sociais de Moçambique sob a metáfora de um colar de missangas que une todos os personagens. Os narradores, por sua vez, exploram a relação sujeito-espaço e logo a coletânea figura como um retrato realista do espaço físico de um país caleidoscópico, uma espacialidade eufórica, que reitera o frenesi da recente libertação conquistada com o fim do colonialismo português.
02. (Faculdade Cásper Líbero) Assinale a opção cujo conteúdo é incoerente com O fio das missangas, de Mia Couto:
- Embora sejam breves, os contos – cada qual composto como uma missanga – exploram densamente um conjunto de paixões humanas das mais universais: amores desfeitos, traições, vinganças, suicídios, loucura, incesto...
- Algumas narrativas são marcadas por certa atmosfera de realismo fantástico, que remete às lendas populares de Moçambique. Em “Peixe para Eulália”, por exemplo, há barcos que remam no ar e olhos que saltam de suas órbitas.
- Neologismos como “vizinho anoitrevido” e “saia almarrotada” revelam, para além da mera experimentação formalista, caminhos entre a oralidade do sudoeste pobre da África e a liberdade poética.
- A presença de metáforas sobre o ato de narrar aparece não somente em “A infinita fiandeira” (em que uma aranha tece teias “inúteis”, não para enredar presas, mas por pura arte) como também em “O menino que escrevia versos”, em que um garoto é levado ao médico por gostar bastante de escrever – atividade considerada muito estranha.
- A maioria dos contos explora com fina sensibilidade o universo infantil, dando voz e tessitura à alma de crianças condenadas à não-existência, ao esquecimento. Como objetos descartados, meninos e meninas são aqui equiparados ora a uma saia velha, ora a um cesto de comida, ora, justamente, a um fio de missangas.
03. (F. Cásper Líbero) A personagem-narradora de O cesto, que integra O fio das missangas, de Mia Couto, era desprezada pelo marido. Assinale a opção em que a passagem do texto NÃO caracteriza o estado de submissão e passividade vivido por ela:
- “Hoje será como todos os dias: lhe falarei, junto ao leito, mas ele não me escutará. Não será essa a diferença. Ele nunca me escutou.”
- “Onde vivo não é na sombra. É por detrás do sol, onde toda a luz há muito se pôs.”
- “Agora, pelo menos, já não sou mais corrigida. Já não recebo enxovalho, ordem de calar, de abafar o riso.”
- “Amanhã, tenho que me lembrar para não preparar o cesto da visita.”
- “Como a pedra, que não tem espera nem é esperada, fiquei sem idade.”
04. (F. Cásper Líbero) Sobre as características da literatura africana, presentes em O fio das missangas, de Mia Couto, é correto afirmar:
- A literatura moçambicana buscou meios de conseguir conviver com os conflitos póscoloniais, explorando narrativas orais de padrão culto, diluindo as marcas culturais híbridas dentro de uma mesma cultura e criando pontos de contato entre a língua europeia trazida pelos colonizadores e as línguas locais.
- A literatura de Mia Couto irá refletir de modo direto a situação cultural de seu país. O fio das missangas tematiza o universo intelectual de Moçambique, atentando para questões concernentes à construção das identidades literárias cujas referências foram dilaceradas e desvalorizadas pela colonização europeia.
- O principal problema da literatura pós-colonial moçambicana relaciona-se ao fato de ela fazer interagir uma tradição cultural africana (fortemente enraizada na oralidade) com outra, europeia, resguardada pela autoridade da escrita.
- A literatura pós-colonial, embora profundamente crítica, não consegue retratar as marcas profundas da exclusão e da dicotomia cultural durante o domínio imperial, as transformações operadas pelo domínio cultural europeu e os conflitos decorrentes.
- Os escritores moçambicanos passaram a incorporar as estratégias colonialistas existentes na literatura, recusando os mecanismos de subversão experimentados pela imaginação poética, preferindo, em contrapartida, abordar questões relacionadas à tradição da literatura europeia.
05. (USS) António Emílio Leite Couto é um dos nomes mais importantes dentre os escritores africanos de língua portuguesa. Moçambicano nascido em 1955, Mia Couto, como é conhecido, é também biólogo e professor universitário, dedicando-se aos estudos de impacto ambiental. O conto a seguir é de sua autoria.
O MENDIGO SEXTA-FEIRA JOGANDO NO MUNDIAL
Lhe concordo, doutor: sou eu que invento minhas doenças. Mas eu, velho e sozinho, o que posso fazer? Estar
doente é minha única maneira de provar que estou vivo. É por isso que frequento o hospital, vezes e vezes,
a exibir minhas maleitas1. Só nesses momentos, doutor, eu sou atendido. Mal atendido, quase sempre. (...)
Desta feita, porém, é diferente. Pois eu, de nome posto de Sexta-Feira, me apresento hoje com séria e
[5] verídica queixa. Venho para aqui todo desclaviculado, uma pancada quase me desombrou. Aconteceu
quando assistia ao jogo do Mundial de Futebol. Desde há um tempo, ando a espreitar na montra2 do
Dubai Shopping, ali na esquina da Avenida Direita. É uma loja de tevês, deixam aquilo ligado na montra
para os pagantes contraírem ganas de comprar. (...)
É ali no passeio que assisto futebol, ali alcanço ilusão de ter familiares. O passeio é um corredor da
[10] enfermaria. Todos nós, os indigentes ali alinhados, ganhamos um tecto3 nesse momento. Um tecto que
nos cobre neste e noutros continentes.
Só há ali um no entanto, doutor. É que sou atacado de um sentimento muito ulceroso enquanto os meus
olhos apanham boleia4 para a Coreia do Sul. O que me inveja não são esses jovens, esses fintabolistas,
todos cheios de vigor. O que eu invejo, doutor, é quando o jogador cai no chão e se enrola e rebola a
[15] exibir bem alto as suas queixas. A dor dele faz parar o mundo.
Um mundo cheio de dores verdadeiras para perante a dor falsa de um futebolista. (...)
Eu sei, doutor, lhe estou roubando o tempo. Vou directo no assunto do meu ombro. Pois aconteceu o
seguinte: o dono da loja deu ontem ordem para limpar o passeio. Não queria ali mendigos e vadios. Que
aquilo afastava a clientela e ele não estava para gastar ecrã5 em olho de pobre. Recusei sair, doutor. O
[20] passeio é pertença de um alguém? Para me retirarem dali foi preciso chamar as forças policiais. (...)
Pois eu, conforme se vê, vim ao hospital não por artimanha, mas por desgraça real. O doutor me olha,
desconfiado, enquanto me vai espreitando os traumatombos. Contrariado, ele lá me coloca sob o olho de
uma máquina radiográfica. Até me atrapalho com tanta deferência. Até hoje, só a polícia me fotografou. (...)
E logo me desando, já as ruas deságuam. Chego à loja dos televisores e me sento entre a mendigagem. (...)
[25] O que eu vi num adocicar de visão foi isto, sem mais nem menos: eu e os mendigos de sexta-feira estamos
no mundial, formamos equipa com fardamento brilhoso. E o doutor é o treinador. E jogamos, neste
momento preciso. Eu sou o extremo esquerdo e vou dominando o esférico, que é um modo de dominar
o mundo. Por trás, os aplausos da multidão. De repente, sofro carga do defesa contrário. Jogo perigoso,
reclamam as vozes aos milhares. Sim, um cartão amarelo, brada o doutor. Porém, o defesa continua a
[30] agressão, cresce o protesto da multidão. Isso, senhor árbitro, cartão vermelho! Boa decisão! Haja no jogo
a justiça que nos falta na vida.
Afinal, o vermelho é do cartão ou será o meu próprio sangue? Não há dúvida: necessito de assistência,
lesionado sem fingimento. Suspendessem o jogo, expulsassem o agressor das quatro linhas. Surpresa
minha – o próprio árbitro é quem me passa a agredir. Nesse momento, me assalta a sensação de um
[35] despertar como se eu saísse da televisão para o passeio. Ainda
vejo a matraca do polícia descendo sobre
a minha cabeça. Então, as luzes do estádio se apagam.
MIA COUTO O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
1 Maleitas – doenças de fácil resolução.
2 Montra – vitrina.
3 Tecto – teto.
4 Boleia – carona.
5 Ecrã – tela.
O texto explora a rel
- Estar doente é minha única maneira de provar que estou vivo. (l. 1-2)
- Venho para aqui todo desclaviculado, uma pancada quase me desombrou. (l. 5)
- Um mundo cheio de dores verdadeiras para perante a dor falsa de um futebolista. (l. 15-16)
- Pois eu, conforme se vê, vim ao hospital não por artimanha, mas por desgraça real. (l. 21)