Conjuração Baiana
Conjuração Baiana
Em 1761, com a mudança da sede do governo-geral para o Rio de Janeiro, a capitania da Bahia perdeu sua importância política, apesar de continuar desenvolvendo-se economicamente e a manter seu crescimento, graças ao comércio estrangeiro bastante intenso. Entretanto, não houve melhoria nas condições de vida da população.
O renascimento agrícola que se verificou a partir de 1770 beneficiou apenas os senhores de engenho e os grandes comerciantes, agravando ainda mais as contradições sociais. Contava a capitania com uma população de aproximadamente 50 mil habitantes, a maioria composta por escravos negros ou alforriados, pardos e mulatos, homens livres e pobres que desempenhavam atividades manuais consideradas desprezíveis pelas elites dominantes.
Essa população pobre sofria com o aumento do custo de vida, com a escassez de alimentos e com o preconceito racial. As agitações eram constantes. Entre 1797 e 1798 ocorreram vários saques aos armazéns do comércio de Salvador, e até os escravos que levavam a carne para o general-comandante foram assaltados. A população faminta roubava carne e farinha.
Em inícios de 1798, a forca, símbolo do poder colonial, foi incendiada. O descontentamento crescia também nos quartéis, onde incidentes envolvendo soldados e oficiais tornavam-se frequentes. Havia, portanto, nesse clima tenso, condições favoráveis para a circulação das ideias de igualdade, liberdade e fraternidade.
Perfil da cidade de Salvador, de seus principais fortes e costumes da época. A mudança da sede do governo-geral para o Rio aumentou a tensão entre os grupos sociais da capital baiana. Desenho de Carlos Julião, 1779. Domínio público, Gabinete de Estudos Arqueóligos da Engenharia Militar, Lisboa
Governava a Bahia D. Fernando José de Portugal, que já em 1792 tinha sido advertido sobre os perigos da introdução dos princípios revolucionários que se tinham desenvolvido na França. Notícias da própria capitania chegavam a Lisboa, denunciando a situação inquietante e a agitação da população, fazendo com que se recomendasse ao governador maior vigilância contra a propagação das "infames ideias francesas".
A cidade de Salvador em ilustração publicada na obra Navigatium Atque Itinerarium Bibliotheca, de John Harris, 1744. Domínio público
A Conjuração Baiana e as "infames ideias francesas"
Apesar do empenho em contrário das autoridades portuguesas, as "infames ideias francesas" não demoraram a atravessar o Atlântico. Ao Porto de Salvador, o mais movimentado no período colonial, chegavam os novos ideais. O governo português tentava impedir a entrada de livros contendo as ideias revolucionárias, mas, apesar de toda a vigilância, livros, folhetos e documentos circulavam clandestinamente, algumas vezes trazidos por estudantes brasileiros que retornavam de estudos em universidades da Europa.
Em 1796, a estadia do francês Larcher na Bahia contribuiu para a difusão das ideias revolucionárias. Encarregado de vigiá-lo, o tenente Hermógenes de Aguilar Pantoja, além de aderir a seus ideais, apresentou-o a baianos ilustres.
Nos serões realizados na casa do farmacêutico João Ladislau Figueiredo e Melo, na Barra, Larcher discutia o pensamento dos filósofos iluministas com o padre Francisco Agostinho Gomes, com o senhor de engenho Inácio Siqueira Bulcão, com o cirurgião Cipriano Barata, com o professor e poeta Francisco Muniz Barreto e outros membros da sociedade baiana.
Estudante do século XVIII, da Universidade de Coimbra, onde os mais favorecidos da colônia costumavam estudar. Autor desconhecido. Domínio público, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
No ano seguinte, em julho, na mesma casa em que ocorreram as reuniões com Larcher, foi fundada a loja maçônica Cavaleiros da Luz, onde eram lidos os livros de Rousseau e outras obras de iluministas franceses. A maçonaria, sociedade política surgida na Europa na segunda metade do século XVIII, divulgava as ideias liberais visando combater os princípios absolutistas e mercantilistas.
Na América, as lojas maçônicas, além de difundir as ideias francesas, contribuíram para a descolonização. Aliadas aos interesses das elites descontentes com a metrópole, elas desempenharam papel libertador, incentivando as lutas pela independência.
A princípio, essas ideias circulavam apenas entre os letrados, mas logo começaram a se propagar entre as camadas mais humildes da população, como soldados, alfaiates, mulatos, negros escravos ou libertos. Para essa população, vítima de preconceito racial e sujeita a muitas restrições que a impediam de ocupar determinados cargos e de ascender socialmente, os ideais republicanos tiveram profunda repercussão.
Enquanto a elite intelectual conspirava em suas casas e em sociedades secretas, os homens pobres o faziam murmurando nas ruas. Por meio de manuscritos contendo a tradução dos livros dos enciclopedistas franceses, de boletins e de conversas, as novas ideias espalhavam-se.
Aos poucos, o movimento escapou das mãos da elite, adquirindo um caráter popular e social. A marca popular diferenciou a Conjuração Baiana da Mineira. Os alfaiates João de Deus do Nascimento e Manuel Faustino dos Santos, aliados aos soldados Lucas Dantas de Amorim e Luís Gonzaga das Virgens, passaram a pregar a república, que traria a igualdade para todos.
A monarquia significava opressão, como afirmava um dos boletins em que os conjurados diziam: "Povo que viveis flagelados com o pleno poder do indigno coroado, esse mesmo rei que vós criastes; esse mesmo rei tirano é o que se firma no trono para vos veixar, para vos roubar e para vos maltratar".
O antigo Largo da Piedade, em Salvador, cidade onde as "infames ideias francesas" não circularam apenas entre as elites, mas também entre os populares. Litografia de Louis-Julien Jacottet baseada em desenho de J. M. Rugendas, 1835. Domínio público
No entanto, as ideias de liberdade e de igualdade não eram vistas da mesma maneira por todos os envolvidos na Conjuração. Para a elite branca colonial, liberdade significava o não pagamento de tributos, o fim do monopólio comercial e a independência em relação a Portugal.
Membros da classe proprietária de escravos e de terras desejavam o fim da escravidão, retraindo-se à medida que a ideia de uma república igualitária crescia entre as camadas pobres. Notícias da revolução no Haiti, onde a luta passara dos colonos europeus aos mestiços e negros, assustaram os grandes proprietários, ainda mais que, na Bahia, a população de cor negra correspondia a 80% dos habitantes da capitania.
Para a massa popular, a liberdade era a igualdade de direitos para todos, o fim do preconceito de raça e cor e dos privilégios. Segundo o historiador István Jancsó, "a liberdade era tida por condição de igualdade", o que implicava no fim da escravidão e da subordinação colonial.
A igualdade de direitos para todos, aspiração dos conjurados baianos, aparece em vários escritos, como, por exemplo, no ofício enviado ao governo pelo soldado Luís Gonzaga das Virgens, preterido numa promoção: "O suplicante é um indivíduo da classe dos referidos desgraçados, tem a mágoa, a mágoa inconsolável, de ver subir aqueles que nada mais têm que a cor branca".
Conjuração Baiana: a repressão da Coroa
Enforcamento de líderes da Conjuração Baiana, no Largo da Piedade, em Salvador, 1799. Ilustração de Trípoli Gaudenzi Filho publicada na cartilha A Revolta dos Búzios, em 2011. Uso amparado pela Lei 9610/98, Secretaria de Cultura da Bahia
No dia 12 de agosto de 1798, os baianos foram surpreendidos com manifestos manuscritos afixados nas paredes e muros das casas, igrejas e lugares públicos de Salvador. Eles anunciavam a chegada da liberdade e da revolução. "Animai-vos, Povo Bahiense, que está por chegar o tempo feliz da nossa liberdade: o tempo em que todos seremos iguais", apregoava um dos manifestos. Outro boletim – "Aviso ao Clero e ao Povo Bahiense" – trazia o programa da revolução: igualdade de todos perante a lei, independência da capitania, proclamação da "República Bahiense", abolição da escravidão, liberdade de comércio, aumento do soldo da tropa e protestos contra os altos tributos.
A repressão ao movimento começou imediatamente. Os manifestos foram arrancados e levados ao governador, que chegou a receber uma carta dos conjurados pedindo sua adesão. O primeiro a ser preso foi o escrevente Domingos da Silva Lisboa, cuja letra era semelhante à dos panfletos. No entanto, novos manuscritos apareceram e as suspeitas recaíram sobre o soldado Luís Gonzaga das Virgens, conhecido por gostar de ler e escrever, por seus ofícios enviados às autoridades e por sua pregação revolucionária.
O soldado foi preso e em sua casa foram encontrados manuscritos de documentos revolucionários e cartas comprometedoras. Preocupados que Luís Gonzaga não resistisse aos interrogatórios, os outros conjurados tentaram libertá-lo, mas foram traídos por alguns delatores. Casas foram invadidas e pessoas torturadas. Pelos manifestos colados nos muros das casas de Salvador, 699 pessoas estavam envolvidas na conspiração, mas somente 49 foram presas, a maioria das classes populares: alfaiates, sapateiros, soldados e escravos, todos muito jovens.
Poucos membros da loja maçônica Cavaleiros da Luz foram presos, entre os quais Cipriano Barata, Muniz Barreto e Aguilar Pantoja, que receberam penas brandas. A maior parte da elite ilustrada escapou ilesa.
Todos os quatro líderes condenados à forca eram negros. Ilustração publicada na cartilha A Revolta dos Búzios, em 2011. Uso amparado pela Lei 0610/98, Secretaria de Cultura da Bahia
Após as prisões veio a devassa judicial, que indiciou 34 réus. Vários deles eram alfaiates, o que fez com que a Conjuração Baiana ficasse conhecida como Conjuração dos Alfaiates. Por ordem expressa de D. Maria I, os conjurados foram punidos severamente. João de Deus Nascimento, Manuel Faustino dos Santos, Lucas Dantas e Luís Gonzaga das Virgens foram enforcados e esquartejados. Os outros condenados permaneceram presos ou foram degredados. Os delatores receberam prêmio por sua lealdade à Coroa portuguesa.